Pessoas apavoradas e fechadas dentro de casa, atividades sociais e laborais apenas via internet, disputa mundial por vacinas, edifícios, bares e restaurantes fechados, ameaça no ar e o ser humano próximo, o “outro” como virtual portador da contaminação. Em resumo, toda a construção civilizatória erguida desde a Revolução Industrial, os ícones de uma era, submersos diante da contaminação e da incerteza. O cenário dos tempos atuais sem dúvida alguma é o da realização de todas as “profecias baudrillardianas”, aquelas às quais muitos filósofos, sociólogos, economistas do seu tempo, torciam o nariz como se fosse pura retórica pós-modernista.
O impacto dessa realização de algum modo mobilizou a resistência que me rondou por dias em escrever este texto. O real tornou-se mais real do que qualquer teoria ou reflexão. Baudrillard via os sinais, trabalhou com eles, como um indígena que vasculha a mata e, atento a cada mínimo detalhe, recolhe restos e raspas. Foi assim que avistou desde o início dos anos 70, já em “A troca simbólica e a morte”, as marcas de antevisão da catástrofe. A muitos de seus contemporâneos que o viam como um pessimista, hoje poderíamos contrapor: premonitório?
Afinal, lá está escrito que “uma catástrofe natural é um perigo para a ordem estabelecida, não apenas pela desordem que ela provoca, mas também pelo golpe que desfere contra toda racionalidade soberana” (1976, p.247). Sobre essa racionalidade, ele não cessou de nos prevenir desde o seu primeiro livro “O sistema dos objetos”, na verdade sua tese de doutorado, apresentada para um júri composto por Barthes e Bourdieu, que se desdobra ao longo da sua obra e assume forma definitiva na sua fotografia.
Por outro lado, muitos reconhecem o lado nietzschiano de Baudrillard como o mais potente. E talvez devamos explorá-lo um pouco, investigando qual seria a medida da penetração do pensador alemão em suas reflexões. Isso para dar margem à especulação sobre de que maneira nele se inscreve a esperança, a despeito do pensamento catastrofista e desencantado que pode ser percebido por exemplo “em toda queixa há uma dose sutil de vingança” (Nietzsche, 1985, p.107).
Aqui é oportuno recorrer um pouco à presença do indivíduo fora de sua obra para pesquisar nuances de um desejo de reversão diante da constatação do fim iminente. Uma longa relação pessoal deve ser considerada.
Quadros na parede da casa
“Fetichistas” –– assim Baudrillard nos classificou, a mim e ao meu companheiro, quando pedimos que assinasse o quadro de uma de suas fotografias, em que aparece o manuscrito de Cool Memories. Passava pouco das 11 horas de uma manhã de inverno, estávamos na sala do seu apartamento na rue Sainte-Beuve, em Montparnasse, bebíamos o champagne por ele trazido, quando antes de começarmos a acomodar a foto num porta-documentos. Pedimos-lhe que assinasse a foto, como havia feito anos antes com outra, aquela dos manequins numa vitrine. Pegou da caneta, e nos disse, sorrindo: “Uma bela dupla de fetichistas…”
Na parede da sala no Rio de Janeiro, pendem, emolduradas, duas grandes fotos, com a assinatura de Jean Baudrillard. Têm datas diferentes. A primeira, manequins na vitrine, foi das que marcaram o começo de sua atividade fotográfica, quando dispunha apenas de uma pequena máquina japonesa, que lhe deram de presente. A segunda, o manuscrito de Cool Memories aberto sobre uma mesa, presumivelmente num café parisiense, é da época em que já expunha em galerias e museus as imagens obtidas com máquina profissional.
Assim, duas fotos emolduradas. A imagem dos “Manequins” agradou-nos sobremaneira e de pronto, mas já não tanto ao autor. E bastou manifestarmos o gosto para que nos fosse oferecida, com moldura e tudo. Como havia um resto de viagem a cumprir, ele mesmo guardou o presente debaixo da cama. Ao final da viagem, não passaríamos na volta por Paris. Um ano depois, reencontramos o amigo e o quadro – trata-se verdadeiramente de um “quadro” – continuava no mesmo lugar onde o deixamos, intocado, e o trouxemos tal e qual para casa. O quadro do manuscrito sobre a mesa, bem posterior, resultou de uma seleção dentre vários outros que ele pôs à disposição em nossa última visita a seu apartamento na rue Sainte-Beuve.
Qual a pertinência da pequena história?
Primeiramente, o manequim assinala a temática, recorrente na obra de Baudrillard, do objeto que interroga o sujeito, a despeito de sua irredutível alteridade, sua radical indiferença. Já na segunda metade dos anos setenta, ele sustentava que “para o sistema da economia política do signo, a referência modelar do corpo é o manequim (com todas as suas variantes). Contemporâneo do robô (é o par ideal da ficção científica: Barbarella), o manequim representa um corpo totalmente funcionalizado sob a lei do valor, mas desta vez como lugar de produção do valor/signo. O que é produzido não é mais a força de trabalho, são modelos de significação –– não só modelos sexuais de realização, mas a própria sexualidade como modelo”.( 1976, p. 177).
Para ele, seja robô (“liberação funcional do corpo como força de trabalho”) ou manequim, o corpo –– apesar de suportar, sob o signo da revolução sexual, as esperanças de liberação dos processos primários e proclamar o inconsciente como sujeito da História –– não é nada mais do que um conjunto de modelos de significação construídos por diferentes sistemas. A crítica de Baudrillard visa tanto a psicanálise quanto a mídia. Para compreender todo o alcance dessa crítica, é preciso recorrer à memória dos anos 60 e 70, quando o discurso psicanalítico ganhava a esfera pública com sugestões de transformação das pulsões em bandeira libertária.
A opção por narrar aqui o pequeno episódio de uma longa relação pessoal, em especial com meu companheiro, com quem manteve uma amizade de mais de 30 anos, é muito coerente com o espírito de Jean Baudrillard, pois ao mesmo tempo em que buscava na fotografia uma identificação entre sujeito e objeto, ele não fazia nenhuma distinção radical, na atividade de pensar, entre a teoria e uma certa ficção, que implicava casos e histórias. Ou seja, não estabelecia aquela separação rígida, cara ao positivismo, entre fato e discurso, de modo que o mundo por ele redescrito podia às vezes aparecer como efeito irônico de uma retórica ficcional, ou então numa pequena história narrada podia insinuar-se o conceito.
É certo que Baudrillard, em sua conhecida esquiva ao discurso acadêmico, não reivindicava nenhum método, nem apelava para categorias epistemológicas. De preferência, debruçava-se sobre as aparências, entendidas como necessárias ilusões naturais, ciente de que onde elas se acham há sempre vestígios de verdades a serem retoricamente compartilhadas. Isto não quer dizer, entretanto, que não tivesse uma metodologia analítica. Na verdade, invenção ou criação é o que de fato tem acontecido com os analistas mais intuitivos disso que se poderia designar como uma mutação dos sistemas de pensamento dominantes, rumo à implosão da tradicional ontologia de inspiração aristotélica. Inexiste, por exemplo, uma estrutura explicativa única para a diversidade fenomênica da comunicação, o que nos conduz à exigência de se testar pluralmente a capacidade explicativa de uma teoria.
É possível pensar em mais de um nome ou de origem para esse tipo de invenção. Há outras possibilidades para o olhar, porém cada uma delas fica por conta de quem a formular, porque efetivamente Baudrillard era inegavelmente fecundo em ideias, muitas das quais antecipatórias, quase-proféticas. Mas talvez, para um olhar epistemológico, a invenção de Baudrillard aconteça no quadro de paradigmas e identificável por palavras que o próprio Baudrillard designou como mots de passe, senhas. Aqui, não se está fora do espírito hermenêutico para o qual o conhecimento do singular pressupõe o conhecimento do conjunto. Não uma hermenêutica que pretenda assegurar uma “verdade” qualquer sobre o mundo, e sim um viés nietzscheano, que legitima esteticamente a existência, promovendo a comunhão da forma com o conhecimento, a exemplo da obra de arte. As ideias-paradigmas de Baudrillard costumam convergir, sempre na trilha inspiradora de Nietzsche, para uma pós-humanidade (não o super-homem, certo) que se desenvolve nessa impalpável zona de sombras chamada “comunicação” e que tangencia, na maior parte, a condição de sujeito-objeto.
Manequim é, assim, uma das figuras paradigmáticas para a interpretação brilhante de um conjunto de fenômenos vinculados ao logro da aposta feita pela sociedade de massa no excesso de gozo coletivo. A finalidade da felicidade apregoada pela tecnologia, pela mídia, seria, para Baudrillard, “permitir às pulsões outrora bloqueadas por instâncias mentais (tabus, superego, culpa) cristalizar-se sobre objetos, instâncias concretas onde vem abolir-se a força explosiva do desejo e se materializar a função repressiva ritual da ordem social.” (Baudrillard, 1967, p. 20)
Essa desconfiança radical da realidade é pedra de toque em seu pensamento. Não que considerasse as coisas inexistentes ou irreais, mas sim que se chegou ao fim do clássico princípio de realidade, ou seja, tudo o que chamávamos de real, graças à metafísica da representação foi ao mesmo tempo abolido e deslocado para uma suposta esfera da hiperrealidade. Esta é uma espécie de “grau zero” do sentido, do imaginário, da ilusão. O anúncio nietzscheano da morte de Deus nele se completa com a morte da realidade e, junto a isso, todo o discurso metafísico e universalista da velha Europa.
Na parede da sala, os manequins fotografados na vitrine exibem-se em sua nudez indiferente e glacial, interrogando de alguma maneira sobre a desertificação de suas emoções. A ausência de roupas compele o olhar a deter-se sobre a pele plástica, sem temperatura, sem cheiro, sem pelos, das réplicas sexualmente ambíguas, com fortes sugestões de uma vitrificação da diferença ou de neutralização das pulsões de vida. No fundo da foto, refletido no vidro da vitrine, acaba-se descobrindo o fotógrafo no ato de capturar a imagem, Jean Baudrillard desdobrado em imagem.
A outra foto na parede sala –– o quadro do manuscrito, um dos manuscritos, de Cool Memories –– dirige a consciência para a narrativa sempre presente como atitude e postura na obra e na vida de Baudrillard. Cool Memories é a literatura de Baudrillard, que não se acanhou, aliás, diante da poesia, da letra da canção ou mesmo de uma pequena performance. Fotografando o manuscrito de Cool Memories sobre uma mesa, caneta ao lado, Jean Baudrillard de certo modo fotografava a si mesmo ou sua irônica condição de sujeito num mundo que, para ele, era feito de objetos. Na parede da sala, os manequins e o manuscrito parecem-nos extremamente fotogênicos. Mas atenção
Fim do Mundo
Quando conheci Baudrillard os anos 80 estavam terminando. Para o Brasil, um período florescente começava a ser desenhado, saindo das trevas da ditadura e de uma mídia e um jornalismo amordaçados. Desde o primeiro momento foi impactante a aproximação com os seus escritos. Sua influência em toda uma época foi tão tremenda que ficou marcada num dos filmes icônicos de uma era e da mesma maneira, precursor da atual existência, o emblemático “Matrix”, das irmãs Wachowskis. Até hoje acho impossível eleger o livro favorito em meio a uma obra tão profícua e fluida que mesmo um ano após a sua morte (2007) mais dois livros seus foram publicados.
Justifico assim a opção de ter escolhido falar do aspecto premonitório presente em sua obra e argumentar que a pandemia mundial da Covid-19 é a consolidação do “crime perfeito”, ou como ele conceituou a eliminação do mundo real, com o apagamentos dos seus traços, onde somos ao mesmo tempo criminosos e vítimas.
Por outro lado, assim confinados como estamos “somos hospitalizados pela sociedade, tomados como reféns. Nem a vida nem a morte: assim é a segurança, assim é paradoxalmente também o estatuto do refém” (1984, p.36) assistindo diariamente à “banalização do mundo por intermédio da informação e da comunicação universal” (2004, p.60) em modo acelerado já há décadas. A partir desses pensamentos, que escolho aleatoriamente, pretendo confirmar a inequívoca atualidade da obra de Baudrillard.
Mas se tivesse que fazer, a escolha certamente recairia sobre “L’illusion de la fin” ou La greve des événements” (1992) por diversos motivos. Em primeiro lugar, pela dissecação minuciosa dos dias atuais com 20 anos de antecedência, mas também por ser lastreado pela patafísica, em que, quem sabe, poderia ser possível vislumbrar prospecções. Afinal “a gestão do fim se confunde então com a gestão das catástrofes. E particularmente dessa catástrofe que é a exterminação lenta do fim do mundo” (1992, p. 99).
Esse mesmo “fim do mundo” que levou, no Hemisfério Sul, o líder indígena da etnia Krenak, no Brasil, Ailton Krenak, considerado um dos pensadores mais influentes da atualidade, a desenhar no seu premiado “Ideias para adiar o fim do mundo” (2019) não apenas a perspectiva do fim iminente, não mais restrito às nações indígenas brasileiras, há 500 anos subjugadas pela violenta e acelerada perspectiva capitalista predatória, mas também o reconhecimento do fim dos tempos para o planeta.
Ailton Krenak não traz um discurso apocalítico, mas ao contrário demonstra a integração do índio com o seu território, a dependência e harmonia com o universo circundante, onde rios, céu, mata estão integrados como parte da subjetividade. O espectro diferente dessa concepção é expresso em situações do cotidiano, como o momento em que uma indígena conversa longamente com uma pedra, considerada uma amiga, localizada próxima a sua residência.
Esse reconhecimento dos objetos em sua existência autônoma implica numa lógica de reflexão e de vivência aparentemente distinta daquela apontada por Baudrillard desde em sua obra inaugural “O sistema dos objetos” (1968). Em ambos, o objeto mítico, no primeiro provido ainda do seu aspecto mágico e no segundo esvaziado de todo o sentido. Porém, em ambos a certeza da relação do inanimado com o indíviduo traz a ousadia da experiência humana em sua essência.
Fazer Krenak dialogar com Baudrillard é primeiro assumir que provavelmente já se chegou ao fim do mundo, e não apenas agora com a pandemia. O fim pode ter vindo, aos poucos, lentamente. E as “Ideias para adiar o fim do mundo”, trazidas por quem vivencia a natureza em sua inteireza, concretizam uma opção pela narrativa prospectiva tão presente em ambos os autores. Afinal, ao lado das imagens da hiper-realidade, temos a opção de seguir os sinais do indígena brasileiro: “ A minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim” (Krenak, 2019, p.13).
Baudrillard por outro lado, na sua narrativa preditiva sobre a possibilidade de gerenciamento da catástrofe, arrisca a composição de um cenário final:
A catástrofe artificial, assim como os aspectos benéficos da civilização, progride muito mais rápido do que a catástrofe natural. Os subdesenvolvidos ainda estão nesse estágio primário da catástrofe natural e imprevisível, nós já estamos no segundo estágio, o da catástrofe fabricada — iminente e previsível e chegaremos rapidamente ao da catástrofe programada, a catástrofe de terceiro tipo — deliberada e experimental. E nós lá chegaremos de tanto buscar os meios de escapar da catástrofe natural, da forma imprevisível do destino. Por não poder escapar disso, o homem fingirá ser o seu autor. Por não aceitar o confronto com qualquer termo fatal e incerto, ele vai preferir encenar a sua própria morte enquanto espécie. (Baudrillard, 1992, p.105)
Fim
“Les Manequins” e “Cool Memories” são os únicos quadros da sala. Neste momento, em tempos de confinamento, saltam da parede como a nos revelar o que sempre esteve diante dos nossos olhos. Depois um ano de pandemia, agora cansados pela mesma paisagem do confinamento, a imobilidade dos manequins na vitrine interage como em uma profecia destinal, com potência diferente daquela do retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. Nós não estamos rejuvenescendo sob um quadro que assuma nossas marcas do tempo. Estamos, sim, pouco a pouco, nos tornando tão imobilizados como os manequins, ainda que esperançosos e capazes de continuar a escrever nossas narrativas, nossos manuscritos. E a título de colocar um ponto na narrativa de agora, vale recorrer à última estrofe do “Poema da Necessidade” do mineiro Carlos Drummond de Andrade, para celebrar com urgência nossos amigos e autores favoritos e seguirmos os caminhos atentos aos sinais:
É preciso viver com os homens
é preciso não assassiná-los,
é preciso ter mãos pálidas
e anunciar O FIM DO MUNDO.
(Andrade, 2012, p.15)
[It is necessary to live with men
it is necessary not to kill them,
it is necessary to have pallid hands
and announce THE END OF THE WORLD.
Références
Baudrillard, J. (1989). O sistema dos objetos. São Paulo, Editora Perspectiva.
Baudrillard, J. (1992) L’illusion de la fin ou la grève des événements. Paris, Galilée.
Baudrillard, J. (2004) Telemorfose. Rio de Janeiro. Mauad.
Baudrillard, J. (1984) Las estratégias fatales. Barcelona. Editorial Anagrama.
Baudrillard, J. (1976) L´échange symbolique et la mort. Paris, Gallimard.
Baudrillard, J. (1986) América. Rio de Janeiro, Rocco.
Baudrillard, J. (1976) L`Échange Symbolique et la Mort. Gallimard.
Baudrillard, J. (1967) L´Éphemère. In Utopie.
Krenak, A. (2019) Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo, Companhia das Letras.
Andrade, C.D. (2012) Sentimento do mundo. São Paulo, Companhia das Letras.